O aumento da misoginia declarada sem pudores – entendendo misoginia como ódio contra as mulheres –, também monitorado e apresentado pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, tem uma base multifatorial. Como costumo dizer: problemas estruturais precisam de soluções sistêmicas. As estruturas da nossa sociedade que referem à mulher são a ideia concretizada em leis, instituições, religiões, economia, cultura e outros aspectos (por isso é estrutura), de que o homem é, e deve continuar a ser, superior e proprietário da mulher e por conseguinte de seu corpo. Pensem comigo: só a ideia criada – talvez no sentido metafórico e usada quase literalmente por alguns – a partir do que algumas religiões consideram, de que a mulher nasceu da costela do homem (poderia ser uma parte mais nobre, não é?) diz muito sobre a configuração do nosso mundo e da sua moralidade.
Acredito que no que se refere à equidade de gênero avançamos bastante, especialmente desde a década de 60. A sociedade e suas instituições começaram a se movimentar para concretizar essas mudanças muito apoiadas em ações globais como as promovidas pela ONU – não é por acaso que o governo Trump atacou tanto os programas de DEI (Diversity, Equity, and Inclusion) e há todo um esforço organizado para descredenciar a ONU (é claro que isso não é só por causa da luta dessa organização pela equidade de gênero, mas é esta a dimensão que estou analisando neste texto). Se não tivéssemos avançado, não haveria tanto esforço para que voltássemos várias casas para trás. Por que o ataque? Sendo reducionista e realista: porque isso altera a ordem hierárquica que mencionei no início. Podemos nos apoiar na religião para justificar essa hierarquia que beneficia o homem – já citada como exemplo acima; podemos pensar nos benefícios na economia – as mulheres precisam parir para que haja um número suficiente de pessoas no futuro que sustentem a seguridade social dos países, é um exemplo mas há mais; na moralidade – como, por exemplo, considerar que o corpo feminino e o que se entende por ser mulher pertencem ao homem e aos seus critérios, colocando-as na responsabilidade de serem o eixo familiar e de terem que cuidar e atender a humanidade – de graça vale pontuar. Isso se traduz, na prática, em suportar tudo, incluindo um homem que a desrespeita ou que pratica vários tipos de violência; em prol do amor e da família; e por aí vai.
+ Masculinidades, no plural. Estamos prontos?
Podemos explicar esse fenômeno social, como tem sido bastante referido, pela perda de emprego e de importância social que o homem tem sofrido – sim, esses são fatos que podem contribuir para o mal-estar e para a raiva social. Mas penso que o ponto é que há um incentivo para o ódio contra as mulheres porque é como se nós, mulheres, tivéssemos desobedecido à ordem “divina” – criada pelos homens, claro – de colocá-los o tempo inteiro no lugar de majestade (escrevi bastante sobre isso entre 2013 e 2015).
Agora vamos para o maior paradoxo que se mantém atual e que tem sido um dos focos dos meus estudos: no Brasil, a mulher se percebe como melhor que o homem – é uma crença bem enraizada e fortalecida na sociedade. Como é que ela, mesmo com essa crença fundante, convive e até alimenta o machismo e a misoginia? Porque tem incorporada a ideia de que é mais forte, mais inteligente e que, por isso, precisa “ajudar” o homem a se tornar um ser do bem. Há a crença de que o homem sem a mulher se perde, porque ela é o esteio moral para ele continuar sem vícios ou desvios… Caímos na armadilha e aqui estamos.
+ Poder Para. Adormeceu ou morreu?
Suportando e cuidando para que o ego masculino não fique ferido, magoado, triste. Perdoamos como se estivéssemos a fazer não só um favor, mas a exercer a nossa nobreza de alma. Acomodamos as coisas, mesmo que isso signifique ficarmos em uma situação pior – somos fortes, lembram-se? –, desde que o nosso homem consiga viver com a ideia de que vale a pena. Pensamos que são seres, no fundo, frágeis e que precisam da nossa força e do nosso apoio. Assim, como mulheres fortes, que geram o mundo e conduzem a humanidade, abrimos a nossa casa para que eles voltem sempre como o filho perdido que precisa retornar ao lar para ter chance de se salvar. Ai, ai… pode ser lindo, mas não é, no mínimo, um pouco estúpido? Se pensa como eu, então, como sair dessa armadilha? Não é via guerra nem agressividade, já adianto, mas escrevo mais nos próximos dias sobre as ideias e experiências que tenho tido nas tentativas.